quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Divagações sobre o "nada-espiral" - parte II

Existe algo que todas as religiões tentam explicar, todos os mitos tentam representar e todas as pessoas tentam expressar. Mas, convenhamos, é muito difícil que todos falem da mesma coisa de um modo fiel se expressando através de formas diferentes, e que, ainda assim, preservem o significado que quiseram dar sem interferências. Representamos isso com metáforas ilusórias que, confundidas com a coisa em si, acabam por provocar desavenças, ódio, guerras, etc… Mas como esperar que alguém expresse uma idéia tão abstrata não se valendo de palavras, objetos, enfim, formas que já conhecemos e deste jeito faça a associação correta? Possuímos infinitas possibilidades interpretativas, cada uma com um significado singular para a pessoa que pensa e associa, e ainda somos permanentemente confundidos pela percepção individual das sensações a que somos submetidos o tempo todo.

Até hoje o conhecimento humano se baseou em suas percepções sensoriais (audição, tato, visão, paladar e cheiro) e se valeu de ferramentas como a física, a matemática, a filosofia, etc, para comprovar as impressões pessoais de cada um sobre esses sentidos. Percebemos o bem e o mal, os prótons e os elétrons, os ricos e os pobres, a emoção e a razão. E “sentindo” esse Universo dualista a nossa volta, avaliamos que qualquer existência perfeita estaria fora desse mundo, superior a qualquer força externa que a pudesse derrubar.

Em busca de algo que safisfaça nossa sede de perfeição, representamos aquilo que não conseguimos definir de outra maneira, através de signos e símbolos já existentes - portanto, imperfeitos. Pois aqui neste mundo se acaba com o amor através do ódio, se ameniza o calor com frio, ou seja, não há solução senão produzir o equilíbrio. Nunca existe apenas UMA coisa, a dualidade se consolida através da co-existência de duas partes que interagem e estabelecem uma relação mútua de ação e reação infinita.

Talvez a inconstância da idéia de “relação” como sendo uma COISA e não uma interação entre duas coisas, seja a briga que compramos todos os dias com o mundo, com todos e com nós mesmos. Imaginar que somos apenas UMA parte dessa dualidade que, em todos os sentidos, deve formar uma relação harmoniosa com as OUTRAS partes invividuais e assim vivenciar o absurdo de não ser EU, mas ser NÓS, é de fato uma idéia exageradamente abstrata que só representamos de maneira distorcida e infiel. As tentativas de expressar o perfeito costumam basear-se em condições de tempo e espaço, mas o tempo não passa da relação oposta entre o “passado” e o “futuro”, o espaço, a correspondente entre o “aqui” e o “ali”.

Questionar é contra-argumentar, ou seja, combater algo e criar uma relação que interaja e se equilibre. Como então aceitar uma idéia que sequer pode ser questionada por ser perfeita e não pertencer a lei da dualidade? Como entender a unidade sendo atraído para a dualidade o tempo inteiro?

Idolatrando-a.

Continua…

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Tráfico de emoções


Considero morar em SP e dirigir um carro uma das experiências mais intensas que se pode ter... Tudo bem, quando saio a pé tenho apenas meu frágil corpinho como defesa e entro diretamente em contato/choque sem nenhum intermediário com toda a matéria viva e morta... Ou seja, tratando-se da vida como ela é, o contato humano direto sempre será mais rico e verdadeiro do que qualquer outro tipo de interação. Isso por um lado...

É que, ao fechar a porta do meu carro, sinto como se estivesse entrando em uma espécie de bolha... Poderia até pensar que estou camuflado e deixo de ser eu, humano com toda a minha complexidade e individualidade, e me transformo em mais uma caixa móvel monocromática. Mas, reparando bem, cheguei a algumas conclusões.

Tais caixas estão submetidas a certas regras e sob penas que influem diretamente no meu 'avatar' humano. Até aí, tudo certo... Mas o mais curioso é a forma subconsciente com que os motorista encaram os outros motoristas. Trata-se de um ambiente extremamente sensível. Claro, como no ambiente natural, toda e qualquer ação minha influencia a muitos a minha volta. Mas no trânsito é como se entrássemos todos num barco diferente, onde as relações alcançam um patamar de tensão máxima.

Por exemplo, se eu estou a pé e resolvo parar as pessoas podem continuar seguindo seus caminhos particulares sem problemas... Agora se eu resolvo parar meu carro no meio da Avenida 23 de maio, por exemplo, vou ter e causar problemas. Minha responsabilidade perante às outras pessoas e vice-versa toma proporções gigantescas.

Isso tudo é muito óbvio. Mas me fez notar algumas coisas. Me assusta o fato de eu só olhar pro meu umbigo e realmente sentir raiva dos outros carros (e, infelizmente, das pessoas que os dirigem) no momento em que eles me forçam a mudar meu rumo, aquilo que previ seguir. Eu queria andar por essa pista numa velocidade constante de 50km/h, mas não posso... Tenho que dar passagem tanto a pessoas educadas quanto a outros que jogam o carro pra cima de mim. Na minha vez de passar, ninguém me cede! A força que tenho que fazer para espremer minha raiva e quase me transformar num buda nessas horas equivale a atravessar o Atlântico a nado! Ou então, como na maioria das vezes, viro um animal raivoso...

Agora, e se eu contasse essa mesma história desse jeito: todos os dias você é bruscamente passado para trás por alguém que não está nem aí para a sua vida. É uma questão de orgulho ferido. Todos os dias alguém entra na sua frente sem avisar enquanto você seguia seu rumo, no seu ritmo! Para os mais pragmáticos ceder a isso chega a ser quase insuportável! Se metem na nossa vida sem pedir licensa, somos pressionados por desconhecidos a tomar atitudes que não queríamos tomar... Você gosta de ser criticado? Que tal uma buzinada?? Pois é... Alguns costuram em ruelas estreitas insatisfeitos com a postura passiva dos outros, velhinhas andam a 20km/h na Avenida Brasil por medo e insegurança, já outros exploram a potência que seu carro oferece para suprir a confiança que lhes falta no dia-a-dia... Todos tem seus motivos...

Será que se estivéssemos todos a pé seriamos tão sinceros uns com os outros? No trânsito não há censura de emoções! Estou protegido pela bolha de aço, ameaço as outras bolhas, esqueço que são outras pessoas ali dentro e reduzo a responsabilidade sobre as relações humanas que acontecem ali... Abstraio valores como generosidade, respeito, educação... Ou seja: se temos que ser responsáveis demais por uma lado (o civil), pelo outro (o humano) somos extremamente irresponsáveis!

Se as palavras machucam e os olhos são o espelho da alma, podemos dizer o mesmo das buzinas e faróis? Talvez, nessas situações, eles digam mais sobre nós do que nossos prórpios corpos humanos que, caminhando a pé, estão indefesos diante dos outros corpos e hesitam em se expressar livremente para o bem ou para o mal, desprotegidos contra qualquer reação do outro... No trânsito podemos ser nós mesmos sem encarar as consequências disso... É só acelerar e ir embora.